O Estado brasileiro, por uma triste circunstância, está sob um governo que mistura elementos militares e religiosos na condução da coisa pública, subvertendo os princípios que lhe deveriam orientar.
Euclides da Cunha
O Estado brasileiro, por uma triste circunstância, está sob um governo que mistura elementos militares e religiosos na condução da coisa pública, subvertendo os princípios que lhe deveriam orientar. Isso acontece porque a República é uma forma sem substância, nascida carente daqueles que viriam a constituir o povo. Este, por conta da formação da sociedade, não assumiu o protagonismo efetivo. Na verdade, foi marginalizado, combatido e, no limite, eliminado, como em Canudos, cuja história foi narrada por Euclides da Cunha nas páginas clássicas de Os Sertões[1].
De qualquer forma, apesar dos obstáculos internos e externos antepostos ao desenvolvimento de uma estrutura econômica e social organizada como colônia de exploração, na periferia do sistema do capitalismo (FURTADO, 2007; PRADO JR, 2006), o Brasil logrou no século XX constituir uma sociedade urbana e industrial e organizar-se como nação. Após longa transição, chegou ao Estado constitucional e ensaiou se democratizar ao tempo em que republicanizava a República. A mesma que, no nascimento, chamou a atenção de um crítico francês por, aparentemente[2], ter nascido sem povo (CARVALHO, 1987. P. 10).
Acontece que, para a nossa desgraça, não nos faltou um povo, mas sim uma elite verdadeiramente revolucionária. As condições para o seu surgimento não se apresentaram. E essa situação de origem insiste em nos assombrar de tempos em tempos, lembrando que precisamos construir a cidadania autêntica, romper com o passado e pactuar o destino comum. O particularismo e o autoritarismo dos primeiros anos da aventura colonial são a origem de todos os vícios, ainda que se apresentem com roupagem nova. A moléstia que Thomas Jefferson identificou e relatou a George Washington nos acomete na figura não de um rei, mas de um déspota eleito.
“Eu era inimigo ferrenho de monarquias antes de minha vinda à Europa. Sou dez mil vezes mais desde que vi o que elas são. Não há, dificilmente um mal que se conheça nestes países, cuja origem não possa ser atribuída a seus reis, nem um bem que não derive das pequenas fibras de republicanismo existente entre elas” (JEFFERSON, 1964, p. 67).
Não vivemos sob regime monárquico, mas quem governa atua autocraticamente, sem respeitar o povo e as Leis. Os que são investidos de funções de Estado desrespeitam e assombram os comuns com truculência e ameaças. Este é um mundo de privilégios e mandonismos privados. Não é uma República. E dificilmente será enquanto “os de baixo” não tomarem o destino em suas mãos, “exigindo transformações profundas na política econômica, nas funções do Estado e na estrutura da sociedade de classes” (FERNANDES, 1995). O andar “de cima” está confortável em seu domínio e não foi e não será autenticamente republicano e democrático[3]. Não é similar ao congênere norte-americano, francês e inglês. A história não o fez revolucionário e o tempo para isso passou.
Aqui, as fórmulas políticas e jurídicas que orientam a vida no dia a dia não encontraram quem as defendesse com vigor. Como os índios, os negros, os imigrantes pobres, as mulheres e todas as minorias foram historicamente negligenciados, a transição da ordem estamental para a sociedade de classes não se fez com a generalização de valores e instituições sociais especificamente modernas. O acervo de ideias e atitudes que dão vida à democracia e à República não encontrou um sujeito que as encarnasse na luta contra o passado. E este acabou impondo o seu peso e condicionando o presente sob uma impessoalidade e um legalismo apenas simbólico.
Os endinheirados que julgam poder decidir o destino da sociedade política a partir de grupos de WhatsApp são a expressão contemporânea dos senhores de terras e de gentes do passado. Os políticos e comunicadores sociais que os defendem com base no falacioso argumento da liberdade de expressão não passam de deslumbrados com o poder privado e a violência que ele exibe.
“[..] tudo o que os “investigados” fizeram foi falar de política entre si num grupo de WhatsApp. Desceram a lenha no STF, alguns disseram que gostariam de um golpe de Estado e todos falaram bem do presidente Bolsonaro; houve quem se manifestasse unicamente clicando as figurinhas que servem como comentário nesse tipo de conversa escrita pelo celular. É isso – um nada absoluto.” (GUZZO, 2022)
A tragédia brasileira resulta desse descompasso entre matéria e forma, povo e governo, sociedade e Estado. A mortandade que assistimos durante a pandemia, o desemprego, a escalada da violência não são fruto do acaso. São a consequência da orgia que envolve privatismo, fardas e discurso religioso num governo que deveria ser público, civil e laico. Parafraseando Silvio Romero, a realidade é, de fato, horrível (ROMERO, 1897. p. 123), mas pode ser alterada! As eleições deste dia 2 de outubro são apenas o primeiro e pequeno passo. Os demais reclamam atores comprometidos com a mudança, capazes de conduzir durante a longa travessia.
NOTAS:
[1] Conforme descreve Euclides da Cunha, a matança oficial eliminou até a última alma do povoado erguido no sertão: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiram até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 000 soldados.” (CUNHA, 1991. p. 473).
[2] É óbvio que o Brasil tinha povo, mas este estava alheado dos acontecimentos que conduziram à República. O trabalho de José Murilo de Carvalho: Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi é fundamental para a compreensão da ausência de predomínio popular no 15 de novembro de 1889.
[3] A empresária que recentemente sugeriu aos seus pares demitir “sem dó” os trabalhadores que ousarem votar na oposição ao governo de ultradireita de Jair Bolsonaro é um exemplo que ilustra a visão de mundo de parte da elite nativa. (Duarte, 2022)
BIBLIOGRAFIA:
CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.
CUNHA, Euclides. Os Sertões – Campanha de Canudos. São Paulo: Círculo do Livro, sem data de edição.
DUARTE, Isadora. Empresária do agro orienta demissão de eleitores de Lula; MPT investiga. In: < https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/empresaria-do-agro-orienta-demissao-de-eleitores-de-lula-mpt-investiga,1f73517e9713795aafad2e516de0e24aregjsih3.html > Acesso em 23 de setembro de 2022.
FERNANDES, Florestan. O rateio da pobreza. In: < https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/8/11/brasil/39.html > Acesso em 23 de setembro de 2022.
FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. 34ª edição. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.
GUZZO, J. R.. O caso dos “empresários golpistas” era mesmo só mais uma agressão de Moraes. In: < https://oboletim.com.br/jr-guzzo/colunistas/o-caso-dos-empresarios-golpistas-era-mesmo-so-mais-uma-agressao-de-moraes/ > Acesso em 23 de setembro de 2022.
JEFFERSON, Thomas. Escritos políticos. São Paulo: Ibrasa, 1964.
PRADO JR. Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 23ª edição. São Paulo: Ed. Brasilinese, 2006.
ROMERO, Silvio. Machado de Assis. Rio de Janeiro: Laemmert & C., 1897.
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