Em livro, pesquisadoras apresentam a situação da criança na execução penal feminina da pena privativa de liberdade. O resultado é chocante!
Gabriel Tarde
Em 1890, na França, o sociólogo e criminologista Gabriel Tarde publica La philosophie pénale. Na obra, a ideia de imitação, desenvolvida em termos precisos em outro texto do mesmo ano –Les lois de l’imitation– aparece para definir o criminoso como alguém que sofreu uma deficiência de similitude social, ou seja, um ser cujos sentimentos e opiniões resultam de uma falha durante o processo de constituição da identidade.
Conforme se depreende da leitura dos textos de Tarde, a identidade do homem deriva de sua condição de ser social. Vivendo com os demais, este imitador por excelência desenvolve pensamentos e ações semelhantes aos dos outros membros do seu grupo, num processo determinado pela operação da imitação de fora para dentro e de cima para baixo. Primeiro, são copiados os sentimentos, desejos e opiniões; depois, o modo de vida. E o copiado é sempre o exemplo dos grupos superiores, que fornece um modelo de vida para as classes sociais inferiores.
No final do século XIX, no momento do surgimento das modernas Ciências Sociais, a inovação psicologizante de Gabriel Tarde sofreu a concorrência de Émile Durkheim e acabou por restar lateral. De qualquer forma, não é possível deixar de pensar nas leis de imitação ao concluir a leitura de Crianças Encarceradas: A Proteção Integral da Criança na Execução Feminina da Pena Privativa de Liberdade, trabalho das pesquisadoras do Direito Cláudia Maria Carvalho do Amaral Vieira e Josiane Rose Petry Veronese, que, após realizar pesquisa de fôlego, apresentam a situação da criança na execução penal feminina da pena privativa de liberdade.
Partindo da delimitação do quadro protetivo da infância no Brasil, as autoras de Crianças encarceradas esmiúçam a Doutrina da Proteção Integral, acolhida pelo art. 227 da Constituição da República Federativa do Brasil (1988), e buscam verificar se, de fato, na realidade da execução penal feminina está assegurada a prioridade absoluta à proteção dos direitos fundamentais da criança e do adolescente brasileiros.
Longe de ser uma obra de exegese doutrinária, Crianças Encarceradas encanta por seu apelo social e político, pela luz que lança sobre o tema dos Direitos Fundamentais em um mundo que resta como que a parte, como é o caso dessas instituições totais que são as prisões, espaços nos quais as mulheres e os seus filhos são objeto de procedimentos modeladores, conforme ensina Erving Goffman (1987). Nestes locais, de acordo com a pesquisa tornada livro, as violações à liberdade e à dignidade da criança desmascaram uma situação de inadaptação das instituições e dos corpos administrativos para lidar com o paradigma legal da Proteção Integral.
A realidade do sistema prisional, com sua vida intramuros fechada aos olhos da sociedade, não deixa de apresentar dificuldades à pesquisa. Não há dados oficiais consistentes sobre a estrutura física dos estabelecimentos que acolhem crianças em virtude do cumprimento da pena privativa de liberdade por suas mães; nem, tampouco, sobre o número de crianças “encarceradas”. Isso, contudo, não impede a análise sobre como é o nascimento e a infância da criança nos estabelecimentos penais femininos e que a eles volta para manter vínculos familiares. E o resultado é chocante!
Proteger os direitos da criança, como lembram Cláudia Maria Carvalho do Amaral Vieira e Josiane Rose Petry Veronese, é mais do que mantê-las junto às mães dentro do espaço prisional, sem considerar as condições indispensáveis para o seu desenvolvimento. Isso faz com a pena da mãe se prolongue na criança, com efeitos sociais e psíquicos deletérios para o ser humano, além de ofender o princípio da norma legal, segundo a qual deve ser observado o interesse superior da criança.
Em uma instituição onde a realidade vivida se repete incessantemente, reproduzindo um cotidiano sem sentido, marcado pela expectativa da passagem do tempo, descuidar da humanidade da criança, inocente em relação à pena da mãe, é tão ou mais grave do que descuidar da pessoa sob restrição de liberdade. Para voltar às ideias de Gabriel Tarde, acima enunciadas, tal omissão significa submeter o ser em formação ao perpetuum mobile da constituição de uma identidade falha, seja pelo exemplo que é dado, como pelos sentimentos que são transmitidos.
Afinal, tem razão as autoras, ao concluir o trabalho temendo que a execução penal feminina da pena privativa de liberdade continue a cuidar da criança com base em uma normatividade à margem da Proteção Integral, com estruturas físicas e recursos humanos formatados a partir da perspectiva da segurança e da disciplina, marcados pela violência, permanecendo o estado de violação aos direitos da criança que, quando adulta, lembrará que já esteve “presa”.
Referências Bibliográficas
GOFFMAN, E.. Manicômios, prisões e conventos. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1987.
TARDE, Gabriel. La philosophie pénale. Lyon e Paris, Storck e Masson, 1892.
____________. Les lois de l’imitation. Paris, Félix Alcan, 1921.
Serviço
VIEIRA, Cláudia Maria Carvalho do Amaral e VERONESE, Josiane Rose Petry . Crianças Encarceradas: A proteção integral da criança na execução penal feminina da pena privativa de liberdade. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2014.
Publicado originalmente em Revista de Direito. Número 3. 07 de julho de 2015.
Obrigado professor! Impossível não sairmos angustiados da leitura.