Ao investir no abandono e na desinformação, os governistas criam as condições ótimas para o inferno social.
Hans Magnus Enzensberger
Enquanto avançamos feitos locomotivas desgovernadas rumo ao abismo, Brasília não emite sinais de sensatez. O presidente e seus assessores optaram pela guerra cultural ao custo do desfibramento social e da vida dos cidadãos. Afirmando realizar uma missão purificadora, relacionada à destruição de um socialismo imaginário, aniquilaram a um só tempo as estruturas de proteção ao trabalho, de promoção da saúde, da educação e da cultura. Os ministérios do trabalho e da cultura foram extintos; os da saúde e da educação estão acéfalos. Falta norte e sobra confusão às vésperas da mais importante das eleições desde a redemocratização.
O discurso oficial procura justificar a loucura brandindo um certo liberalismo econômico e uma peculiar teologia de prosperidade. Em defesa de valores morais particularíssimos, faz do Estado uma trincheira na luta contra o pluralismo, a democracia e os valores inscritos na Carta Constitucional. O resultado é a linha direta com a tradição autoritária, elitista e antipopular que forjou a sociedade e suas instituições, herança da escravidão e do exclusivo agrário. A novidade é o deslocamento da matriz ibérica, que cede lugar a um plágio fora do lugar de um ethos protestante, inexistente em nossa sociabilidade cotidiana.
Ao impor a sua agenda no debate político, o governo Bolsonaro investiu contra a democracia brasileira buscando retomar os nexos com a história de exclusão de setores inteiros da vida pública. Não bastasse, estabeleceu uma lógica que oculta, por traz da defesa do indivíduo, uma premissa totalitária, segundo a qual as ideias e visões de mundo destes seres deveriam ser iguais, conformadas à ultradireita latino-americana e mundial que ele encarna[1].
A uniformidade pretendida é típica de uma concepção abjeta, que subverte o verdadeiro respeito à individualidade. O princípio da igualdade na sociedade pressupõe a criação de condições que favoreçam o desenvolvimento pleno da personalidade humana em toda a sua extensão e variedade, sem óbices de qualquer espécie. Liberais verdadeiros sabiam disso. Basta ler Alexis de Tocqueville e John Stuart Mill atacando a uniformidade enquanto conciliam democracia e liberdade, ainda que em contextos e por motivações particulares e diferentes[2].
Os nossos arquitetos da destruição, obcecados com a criação de um mercado absolutamente livre, no qual as pessoas e o ambiente nada mais são do que insumos, qualificam como subversão toda a contestação e jogam a sociedade numa espécie de guerra de todos contra todos. O armamento da população civil e o crescimento da violência política são indicativos da tragédia[3].
Ao investir no abandono e na desinformação, os governistas criam as condições ótimas para o inferno social. Divididos e desorientados, os cidadãos já não conformam uma comunidade política de destino, mas um conjunto de interesses concorrentes acampado num mesmo território em luta por recursos escassos. A violência molecular é o desaguadouro da obra cuidadosamente encetada.
“No começo não há sangue, os indícios são irrisórios. A guerra civil inicia-se discretamente, sem que haja uma mobilização geral. Pouco a pouco, multiplica-se o lixo nas ruas. No parque amontoam-se seringas e garrafas de cerveja quebradas. Nas paredes surgem pichações monótonas, cuja única mensagem é o autismo: elas exorcizam o eu que já não mais existe. [...] Nas ações espontâneas expressa-se a raiva das coisas em bom estado, o ódio por tudo o que funciona e que forma um amálgama indissolúvel com o ódio por si mesmo.” (ENZENSBERGER, 1995, p. 37)
O crescimento da intolerância, a cultura da morte, o ódio contra o diferente e as mais variadas formas de violência que povoam o cotidiano brasileiro são um sintoma grave do caráter dessa espécie de estado de natureza em que a sociedade foi atirada. E isso faz parte de uma estratégia que explora a fragilidade das democracias contemporâneas.
“O problema da democracia no século XXI é que suas virtudes positivas estão se esgotando. [...] As demandas de reconhecimento, cada vez mais manifestas na linguagem da identidade pessoal, estão indo num sentido oposto [ao das soluções democráticas] rumo a alguma coisa que lembra o anarquismo. Ao longo do século XX, a experiência coletiva da luta política -tanto para resolver os problemas comuns quanto para enfatizar o reconhecimento democrático – manteve a democracia intacta. No século XXI, a experiência dispersa da fúria política está contribuindo para que se despedace.” (RUNCIMAN, 2019, pp. 228-229)
Com frieza, o grupo no poder serve aos acumuladores de riqueza daqui e do exterior e degrada a política e a convivência social. As pessoas, tal qual autistas, presas em seus mundos interiores carregados de fantasmas, culpas e temores, investem contra os próximos e os distantes, contra tudo que ameace ou contrarie. No ápice desse processo, se o atingirmos, já não haverá vencedores e perdedores; apenas o vazio. A ultradireita no poder, seja lá qual a sua designação -conservadora, evangélica, neoliberal, antiglobalista- terá realizado a sua obra de destruição, conforme as palavras de Bolsonaro em Washington, no ano de 2019: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer”. (MENDONÇA, 2019)
NOTAS:
[1] Trecho da fala do presidente durante os atos de Sete de Setembro é elucidativa do argumento: "Compare o Brasil com os países da América do Sul, compare com a Venezuela, compare com o que está acontecendo na Argentina, e compare com a Nicarágua. Em comum esses países têm nomes que são amigos entre si. Todos (...) são amigos do quadrilheiro de nove dedos que disputa a eleição no Brasil. Não é voltar apenas à cena do crime... Esse tipo de gente tem que ser extirpada da vida pública." (SARTORI e MARTINI, 2022)
[2] Alexis de Tocqueville busca, a partir da descrição do modelo norte-americano que ele conheceu no início do século XIX, as possibilidades de coexistência entre o desenvolvimento da igualdade de condições entre os homens e a manutenção da liberdade. John Stuart Mill exprime, com sua obra, o compromisso liberal com a democracia, sobretudo quando trata do tema do governo representativo. CF.: MILL, 2006 e TOCQUEVILLE, 1967.
[3] “Um levantamento recente da UniRio mostrou que os casos de violência política no Brasil cresceram 335% nos últimos três anos. Só no primeiro semestre desse ano, 45 lideranças políticas foram assassinadas e, ao todo, 214 casos de violência foram identificados.” (CARTA CAPITAL, 2022)
BIBLIOGRAFIA:
ENZENSBERGER, Hans Magnus. Guerra civil. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.
MENDONÇA, Ricardo. Antes de construir é preciso destruir muita coisa, diz Bolsonaro nos EUA. O Globo. 18/03/2019. In: < Antes de construir é preciso 'desconstruir muita coisa' no Brasil, diz Bolsonaro nos EUA - Jornal O Globo > Acesso em 25 de setembro de 2022.
MILL, John Stuart Mill. Considerações sobre o governo representativo. São Paulo: Escala, 2006.
RUNCIMAN, David. Como a democracia chega ao fim. São Paulo: Todavia, 2018.
SARTORI, Caio e MARTINI, Paula. Bolsonaro fala em “extirpar” esquerda e colocar outros Poderes "dentro das 4 linhas da Constituição". In: Valor Econômico. 07/09/2022. < https://valor.globo.com/politica/noticia/2022/09/07/bolsonaro-fala-em-extirpar-esquerda-e-colocar-outros-poderes-dentro-das-4-linhas-da-constituicao.ghtml > Acesso em 24 de setembro de 2022.
TOCQUEVILLE, Alexis de. La democracia en la América. Segunda edición. México: Fondo de Cultura Económica, 1967.
Violência política no Brasil preocupa ONU, alerta representante para a América do Sul. In Carta Capital. 21/07/2022. < https://www.cartacapital.com.br/politica/violencia-politica-no-brasil-preocupa-onu-alerta-representante-para-a-america-do-sul/ > Acesso em 24 de setembro de 2022.
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