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Foto do escritorRogério Baptistini Mendes

Defesa da honra: misoginia e alienação

Atualizado: 29 de jul.

Não se nasce mulher. Da mesma forma, tampouco se nasce homem. As representações do masculino e do feminino que nos aprisionam em um cotidiano hostil são contingentes, não eternas.

Simone de Beauvoir


No dia 30 de abril de 2021, enquanto a pandemia castigava os brasileiros e o governo federal se omitia em seu combate ao custo da vida de centenas de milhares, um grupo de mulheres empresárias e empreendedoras almoçava com o presidente em São Paulo, no Palácio Tangará, e tirava fotos exibindo sorrisos satisfeitos, conforme noticiam diversas mídias. Não há um único registro de críticas à misoginia do chefe do governo ou ao descaso com que conduzia a saúde pública naquele momento de crise. Aquelas mulheres estavam imersas em um mundo refratário à realidade.


O presidente em questão é o mesmo que, quando deputado, afirmou que não estupraria uma colega parlamentar por ela ser feia; e, no clube Hebraica, do Rio Janeiro, em 6 de abril de 2017, assim explicou o fato de ter uma filha mulher: “Eu tenho 5 filhos. Foram 4 homens, a quinta eu dei uma fraquejada e veio uma mulher".

Homens e mulheres estão imersos na mesma realidade social, encontrando-se interiormente divididos. Ainda que sejam capazes de realizar juízos morais, são impelidos por forças poderosas, historicamente constituídas, a realizar movimentos que escapam à compreensão e só fazem tornar o mundo o que é, coisa aparentemente intangível à mudança. Isso ajuda a explicar o comportamento omisso e a demonstração de prazer de mulheres bem-sucedidas socialmente diante de sujeito que demonstra desprezo pela condição feminina.

Devemos à filósofa Genviève Fraisse, autora de L'Exercice du savoir et la différence des sexes (1991), um relato sobre a misoginia na história do pensamento. O seu trabalho nos mostra que, em 25 séculos, desde os filósofos gregos, passando pela idade média cristã, a mulher foi considerada inferior e até mesmo diabólica. Mesmo Kant, que recomendava respeito ao outro como forma de respeito à humanidade, desprezava as mulheres: “no que concerne às mulheres instruídas, elas usam os livros mais ou menos como usam um relógio; exibem-no para que todos saibam que têm um; pouco importa que habitualmente esteja parado ou não esteja regulado com o sol”.

Conforme explica Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo (1949), a representação do mundo é obra dos homens, que o descrevem a partir do seu ponto de vista. Assim, a masculinidade se tornou o padrão, a norma, inclusive para julgar a mulher e definir a sua condição. Exagerando livremente, num salto em direção a outro filósofo para efeito de compreensão, essa masculinidade vulgar e grosseira é comportamento “normal” que governa e disciplina nossos corpos (Foucault). Não é por outro motivo que o ridículo ganha ares de seriedade, quando, por exemplo, durante um julgamento de feminicídio o advogado do réu brada em defesa da honra do acusado: “O cidadão jurado percebe rapidamente quando o fato foi provocado pela vítima”. Esta, no caso, era Ângela Diniz, assassinada em 30 de dezembro de 1976 com 4 tiros na cabeça por Doca Street. Seu crime foi ter terminado o relacionamento.

A tese da legítima defesa da honra, utilizada pelo advogado do assassino de Ângela Diniz, é invocada para atribuir o fato motivador do crime ao comportamento da vítima. Esta, assim como Eva, no paraíso, teria induzido o homem ao vício, maculando a sua honra. Logo, a mulher é a responsável pelo fato de o homem se afastar do comportamento virtuoso, honesto e corajoso, donde a culpada pelo crime que a vitimou. E foi como o júri a considerou no primeiro julgamento de 1979, condenando Doca Street a dois anos de prisão a serem cumpridos em liberdade.

O fato de o Supremo Tribunal Federal (STF), neste ano de 2023, ter tornado inconstitucional a tese da legítima defesa da honra em casos de feminicídio, impedindo que advogados de réus a sustentem, direta ou indiretamente, é um avanço, mas não protege as mulheres da violência contida nos comportamentos dos seus companheiros humanos e de sua naturalização por segmentos sociais consideráveis. A dinâmica social que normaliza um certo padrão do masculino e do feminino continua a todo o vapor, reificando a realidade e transformando a todos em autômatos.

Conforme explica Beauvoir, não se nasce mulher. Da mesma forma, tampouco se nasce homem. As representações do masculino e do feminino que nos aprisionam em um cotidiano hostil são contingentes, não eternas. E podem sem ser demolidas com o auxílio da crítica. Assim, será possível caminhar para uma existência mais rica, livre da domesticação dos corpos e em que cada ser possa encontrar felicidade em sua condição e desfrutá-la com justiça e dignidade.


A luta das mulheres por sua emancipação é a luta da humanidade inteira por liberdade!

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