O Projeto de Lei 490/2007, que trata da demarcação e exploração econômica das terras indígenas, evidencia um estado de coisas que inviabiliza o convívio social e compromete a democracia.
Wilhelm Reich
O Projeto de Lei 490/2007[1], que trata da demarcação e exploração econômica das terras indígenas, evidencia um estado de coisas que inviabiliza o convívio social e compromete a democracia. Entre nós, o grupo governante e os seus apoiadores não reconhecem a humanidade do outro e, mesmo negando, como fazem constantemente na questão dos costumes, estão empenhados numa luta pela hegemonia identitária. Os indícios abundam e o fundamentalismo religioso é o mais evidente deles, pretendendo marcar um novo começo na história da nacionalidade. Um marco zero de uma civilização dos “cidadãos de bem”, como apregoa o presidente continuamente.
Identidade é um conceito que designa fenômenos diferentes abordados por especialistas de disciplinas distintas. Pode indicar eventos étnicos, religiosos, grupais e mentais, por exemplo. Na literatura das Ciências Sociais, três campos ganham destaque nos estudos: o da identidade coletiva, da identidade social e da identidade pessoal (DORTIER, p. 283). Todos eles são manejados em nível discursivo para finalidades políticas. E é obrigatório reconhecer que o bolsonarismo se difundiu como uma resposta às pautas identitárias exploradas pela esquerda petista no poder, o que explica, talvez, a sua penetração entre as camadas médias e baixas da sociedade a partir da associação entre autoridade e moralidade sexual.
A análise da exploração dos impulsos reprimidos no homem médio e o seu comportamento político enquanto massa foi realizada por Wilhelm Reich. Em a Psicologia de Massas do Fascismo, de 1933, o autor estuda como necessidades biológicas reprimidas, como as sexuais, conduzem à estrutura do caráter e desaguam em determinadas condutas irracionais. Sua conclusão, expressa de forma clara no prefácio à terceira edição de 1942, indica que a personalidade do homem oprimido, com sua mística mecanicista de encarar a vida, é que propicia a barbárie política do fascismo. Não o contrário (REICH, p. XVII). Se nos lembrarmos de todas as aberrações proferidas pelo ex-deputado do baixo clero tornado presidente, difundidas em programas de televisão e rádio e, sobretudo, nas mídias sociais, a explicação ganha clareza[2].
Assim como na Europa ocidental das primeiras décadas do século XX, o brasileiro das camadas médias e baixas vivenciou neste início de século expectativas frustradas. O cenário de esperanças pavimentado pela estabilidade econômica e dinamizado por uma situação internacional favorável foi explorado pelo PT para a imposição de uma hegemonia eleitoral, mas, perversamente, alimentou o ressentimento dos que viram ameaçada a sua ascensão econômica e social. O resultado é o que conhecemos, com a política democrática e sua lógica sendo substituída pelo moralismo baixo e rasteiro, capaz de transformar em inimigo desprovido de humanidade quem pensa ou vive de forma diferente. O fanatismo da antipolítica, para usar livremente uma expressão de Mark Lilla (2018).
A antipolítica, na verdade, é consequência de uma forma de encarar a democracia. E, quanto a esta, há continuidade entre o bolsonarismo e o seu ex-adverso. O primeiro, seria expressão da antipolítica; o segundo, da pseudopolítica. A observação das conjunturas anteriores mostra o PT como um partido que explorou à exaustão o discurso antissistema, relegando, desde a sua fundação, os demais atores políticos à vala comum dos vícios que afirmava combater. Este fato criou um problema efetivo quando, finalmente, alcançou o governo, pois teve compor maioria justamente com aqueles que desprezava. Não bastasse, outro elemento atou como armadilha: a apresentação do partido como uma espécie de federação de interesses identitários, cuja atuação oposicionista se lastreava na luta da “sociedade” contra o Estado. Aí, a pseudopolítica, desagregadora e com “desdém pelo demos”. (LILLA, p. 50).
Em uma sociedade como a brasileira, que carrega enormes discrepâncias entre os grupos sociais, as transformações no mundo da produção e do trabalho lançaram suas vítimas reais e potenciais -camadas médias e baixas- em um ambiente democrático corrompido. Pela direita e pela esquerda, as angústias materiais e os recalques conduziram a uma mentalidade reacionária, iliberal e antidemocrática, cuja consequência foi transformar em morais todos os problemas relativos ao governo da sociedade política. Por trás da aparente dessemelhança retórica, os dois extremos comungam uma mesma deficiência: não conseguem conceber a polis como um lugar em que humanos se vejam igualmente como cidadãos e estimem a política como meio para a construção de consensos justos. Na lógica da antipolítica ou da pseudopolítica, o Estado brasileiro é apenas uma associação instrumental para a realização de interesses próprios. Um aglomerado de indivíduos e grupos em guerra permanente.
A questão dos povos indígenas, em causa com aprovação do PL 490 pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados (CCJC), não é uma questão identitária, apesar de conter, da perspectiva antropológica, também esse caráter. Ela é uma questão política. É mais um sintoma da crise da democracia brasileira e dos desafios que se apresentam à cidadania. O tratamento rasteiro emprestado à causa por parte dos apoiadores do governo Bolsonaro remete a uma visão hierarquizada e, portanto, bárbara da humanidade[3]. E exprime o desastre de uma sociedade política que não educa os seus membros para a convivência, o que deve ser a questão central a unir os democratas: reconstruir a cultura pública, civil e laica.
BIBLIOGRAFIA:
Brasil de Fato. Deputado bolsonarista insulta e bate boca com indígenas durante protesto na Alerj. In: (Deputado bolsonarista insulta e bate boca com indígenas | Política (brasildefatorj.com.br)) . Acesso em 02 de julho de 2021.
Correio Braziliense. PL 490: Entenda o que é o projeto que muda a demarcação de terras indígenas. In: (PL 490: Entenda o que é o projeto que muda a demarcação de terras indígenas (correiobraziliense.com.br)). Acesso em 02 de julho de 2021.
Diário da Câmara dos Deputados. Ano LIII, nº 64. Quinta-feira, 16 de abril de 1988.
DORTIER, Jean-François. Dicionário de Ciências Humanas. São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 2010.
LILLA, Mark. O progressista de ontem e o do amanhã: desafios da democracia liberal no mundo das políticas identitárias. São Paulo: Cia das Letras, 2018.
REICH, Wilhelm, Psicologia de Massas do Fascismo. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
NOTAS:
[1] O PL 490/ 2007 impõe um marco temporal para demarcação de terras indígenas -5 de outubro de 1988. Cria dificuldades para novas demarcações, como a exigência de comprovação de posse. Flexibiliza a exploração dessas terras e o contato com povos isolados (Correio Braziliense).
[2] Sobre a questão da demarcação das terras indígenas, numa quinta-feira de abril de 1988, o Diário da Câmara dos Deputados registra a seguinte fala do então deputado Jair Bolsonaro: “Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e, hoje em dia, não tem esse problema em seu país – se bem que não prego que façam a mesma coisa com o índio brasileiro; recomendo apenas o que foi idealizado há alguns anos, que seja demarcar reservas indígenas em tamanho compatível com a população”(DIÁRIO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, p. 33).
[3] Na quinta-feira (30), o deputado estadual Rodrigo Amorim (PSL) insultou indígenas que realizavam manifestação em frente ao prédio da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ). O parlamentar é o mesmo que, durante a campanha eleitoral, no palanque com Wilson Witzel e Daniel Silveira, quebrou uma placa em homenagem a ex-vereadora Marielle Franco, cujo assassinato ainda não foi devidamente esclarecido (BRASIL DE FATO).
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