A propagação da loucura e a cisão que causou na sociedade, por óbvio, não são devidas às ameaças marxistas.
John Maynard Keynes
A democracia brasileira agoniza sob o governo Bolsonaro. Este, amparado por militares, lideranças evangélicas e homens de negócios de reputação duvidosa mobiliza os tipos mais aberrantes da sociedade para uma luta do bem contra o mal, uma cruzada salvacionista levada a efeito por autoproclamados cidadãos de bem contra as derivações de um certo marxismo cultural: o comunismo, a ideologia de gênero, a ideologização das escolas e faculdades, o ateísmo e mais algumas alucinações que povoam a mente dos recalcados.
Em janeiro de 2019, o jornal Folha de São Paulo, em seu caderno Ilustrada, exibiu artigo assinado por Maurício Meireles explicando a origem importada da ideologia que anima a direita bolsonarista. A ideia de que a civilização ocidental, judaico-cristã, está sendo corroída desde dentro por marxistas pervertidos é norte-americana. Sua disseminação está relacionada com a teoria da conspiração, com a suposição da existência de um movimento organizado envolvendo artistas, intelectuais e até o megainvestidor Georges Soros na efetivação do plano.
A propagação da loucura e a cisão que causou na sociedade, por óbvio, não são devidas às ameaças marxistas. Os autoproclamados cidadãos de bem brasileiros, muitos deles negros e mestiços, ignoram que a qualificação que reivindicam para si era título de um jornal supremacista - “Good Citizen” -, publicado por uma bispa evangélica racista norte-americana, apoiadora da Ku Kux Klan, entre os anos de 1913 e 1933, conforme nos conta Linda Gordon no livro “A Segunda Vinda da KKK: a Ku Klux Klan de 1920 e a Tradição Política Americana”. Ignoram, igualmente, que a KKK, segundo explica Paul Krugman, em artigo publicado pelo jornal O Estado de São Paulo, “odiava imigrantes e ‘elites urbanas’; caracterizava-se por ‘suspeitar da ciência’ e por ‘um anti-intelectualismo maior’”. (KRUGMAN, 2022)
É possível conjecturar que esses ignorantes sejam mobilizados pela retórica do bolsonarismo por conta da condição de disponibilidade em que se encontram. Inseridos no mundo da quarta revolução industrial que não os prevê, sem a mesma possibilidade de movimento livre concedida ao Capital e às mercadorias, tudo os ameaça e oprime, sobretudo o futuro. A mentalidade subjugada que formam, revoltada contra a própria existência, se manifesta violentamente contra tudo que seja espontâneo e vivo. Como escreveu Wilhelm Reich, a sua reação é a reação irracional, dos que temem a verdade e não têm coragem de enfrentar a realidade. São como os pacientes que ofendem o médico que combate a doença com insultos ao invés de enfrentar a moléstia com calma, consciência e coragem. (REICH, 2001. P. XVIII). São os homens médios da sociedade, alienados de si e do mundo que constroem diariamente.
Esses homens médios, verdadeiros zés-ninguéns na qualificação de Reich, reproduzem de forma grotesca o comportamento do “andar de cima”. A autoridade exibida por bispos, pastores e políticos engravatados, generais engalanados e empresários endinheirados lhes serve de modelo para o caráter sádico e perverso de suas condutas. A sua frustração se manifesta na violência contra as mulheres, as minorias étnicas, os diferentes. São como sargentos violentos diante dos recrutas, mas prontos a servir aos comandantes. Homens médios que não dirigem, mas são dirigidos. Homens massa.
A salvação da democracia passa pelo voto, pela derrota de Bolsonaro e de todos os candidatos associados ao bolsonarismo nos estados. Mas ela é obra de longo prazo, que reclama o concurso da inteligência para a regeneração da cultura. O fundamentalismo das mentes estreitas não será superado sem um trabalho terapêutico capaz de apresentar soluções para a fruição da vida com dignidade e segurança material; e, noutra frente, pela formação de seres humanos verdadeiramente autônomos, capazes de pensar por si mesmos. Para tanto, é preciso defender uma reforma do ensino em todos os níveis, com um currículo apoiado nos saberes não instrumentais, hoje qualificados como inúteis. Como escreveu John Maynard Keynes no ensaio “As possibilidades econômicas para nossos netos”, mesmo afirmando que o tempo ainda não havia chegado:
“Devemos voltar a colocar os fins antes dos meios, e antepor o bom ao útil. Devemos honrar aqueles que podem nos ensinar a aproveitar melhor a hora e o dia, aquelas pessoas encantadoras que são capazes de apreciar as coisas até o fim, os lírios do campo que não trabalham, nem tecem”. (KEYNES, 2009. P. 28-9)
BIBLIOGRAFIA:
John Maynard Keynes. Possibilità economiche per I nostre nipoti. Milão: Adelphi, 2009.
Maurício Meireles. Bolsonarismo importa dos EUA teoria conspiratória sobre marxismo cultural. In:< Bolsonarismo importa dos EUA teoria conspiratória sobre marxismo cultural - 13/01/2019 - Ilustrada - Folha (uol.com.br) > Acesso em 06/08/2022.
Paul Krugman. Por que os republicanos ficaram tão extremistas?. In: < Por que os republicanos ficaram tão extremistas?; leia a análise de Paul Krugman (estadao.com.br) > Acesso em 06/08/2002.
Wilhelm Reich. Psicologia de Massas no Fascismo. 3ª edição. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2001.
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