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Foto do escritorRogério Baptistini Mendes

Redes sociais e sociedade de risco: desafios para a cultura democrática

Atualizado: 29 de jul.

O universo das redes sociais amplifica espetacularmente o aturdimento dos viventes, apontando para a possibilidade de queda no abismo. Por um lado, tudo é novidade e abertura; por outro, tudo é incompreensão e motivo para o dissenso, para a quebra do contrato social.

Ulrich Beck


Andrew Keen, empresário do Vale do Silício, em um livro publicado faz quase uma década, argumenta que as redes sociais diminuem, desorientam e dividem os seres humanos (KEEN, 2012). Em vez de aproximar as pessoas e fomentar o entendimento, esses espaços servem apenas à exposição ilimitada, ao exibicionismo perigoso. Esse é o tema do seu Vertigem Digital, que, mesmo sem pretender, remete ao turbilhão da vida moderna descrito por Rousseau (1994) na novela A Nova Heloísa. Uma condição existencial de excitação e embriaguez, que ao mesmo tempo que atrai, condena os seres apanhados no seu fluxo.


O universo da internet, das redes sociais e de seus suportes físicos – os smartphones – não inaugura a sensação da vida como uma permanente confusão e colisão de opiniões conflitivas. As personagens Júlia e Saint-Preux, amantes retratados por Rousseau na novela, são a expressão dessa experiência[1]. O que as novas tecnologias fazem é amplificar espetacularmente o aturdimento dos viventes, apontando para a possibilidade de queda no abismo. Por um lado, tudo é novidade e abertura; por outro, tudo é incompreensão e motivo para o dissenso, para a quebra do contrato social[2].


Marshall Berman (1986) qualifica esse estado em que as coisas estão impregnadas pelo seu contrário como uma das marcas da modernidade. Esta, lança a tudo e a todos numa aventura e, como tal, implica em riscos. Alçados ao proscênio, os seres humanos, atores dos seus destinos, lutam desesperadamente para emprestar sentido ao que lhes coloca em permanente estado de vir a ser. A construção de narrativas, o ressurgimento do fantasma populista e as ameaças à vida democrática podem encontrar aí uma resposta. E, também, a nostalgia por um passado idealizado como mais seguro[3].


As culturas tradicionais não tinham um conceito de risco, como lembra Anthony Giddens (2000). A palavra, que significa perigo, dano ou doença, passou em ser utilizada no renascimento, mas foi sobretudo na modernidade, em sociedades cuja seta da história está orientada para o futuro, para o que está por vir, que a sua associação com a ação arriscada típica da aventura ganhou força e fomentou comportamentos políticos antagônicos: apologistas e reacionários. Os últimos, lutam desesperadamente contra forças que não podem controlar, julgando que a cadeia de eventos, fatos e acontecimentos que compõe o presente e descortina o futuro possa ser paralisada em favor do restabelecimento do status quo ante. E é a sua energia, nas redes sociais, o objeto de manipulação dos oportunistas que operam em três áreas interrelacionadas: o mercado, a cultura e a política.


Sociologicamente, se há algo que esses oportunistas perceberam é que a dinâmica da mudança social opera num nível de aceleração cada vez maior em relação à capacidade de regulação das instituições tradicionais da democracia. No mundo conectado pela internet, pelas redes sociais e seus suportes físicos, todo um ambiente organizado para o gerenciamento dos conflitos e para a produção de consensos se tornou lento, pesado, anacrônico. Conforme explica Ulrich Beck,

“a metamorfose diante do risco global produz um abismo entre expectativas e problemas percebidos, por um lado, e instituições existentes, por outro. As instituições existentes poderiam funcionar perfeitamente no antigo quadro de referência. No entanto, no novo quadro de referência, elas fracassam. Por isso, uma característica essencial da metamorfose é que as instituições simultaneamente funcionam e fracassam”. (Beck, 2018, p. 184).


Sem resposta à vida que desaparece ante à fúria dos investimentos e das novas tecnologias, seres humanos dispensáveis se atomizam, perdem as referências socializadoras do trabalho estável, do lugar de moradia (CASTELL, 2015; SENNETT, 1999). E temos o indivíduo entregue aos seus próprios meios, em queda livre no abismo, desesperado por algo em que possa se agarrar.


Rosalind Williams, professora de história da ciência e da tecnologia no Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos ajuda a compreender o fenômeno em suas dimensões interrelacionadas: do mercado, da cultura e da política. O século XXI introduziu uma concepção de progresso hesitante na história, definida a partir da mudança material. A alteração cognitiva profunda amplifica o noção de crise a partir de novos valores, sustentados numa cultura escrava dos mercados e de suas operações diárias. Estes, “dão boas-vindas à mudança, mas não a longo prazo. A sua procura frenética por valor (econômico) os torna míopes. […] O sentimento de curto prazo é galopante”. (Williams, 2013, p. 91).


A cultura da modernidade, como argumenta Williams, foi cunhada sobre um conjunto de conceitos: natureza, ciência, universalidade e soberania. A sua substituição por outro conjunto na gramática cotidiana, composto pelas noções alternativas de ambiente, “economia” do conhecimento, globalização e governança, tem profundas implicações. Quanto à segurança em relação ao futuro, a globalização dos mercados,

“com uma retórica ancorada na liberalização, desregulamentação e privatização, levou os governos nacionais a retirarem-se progressivamente da esfera econômica. […] Quem governa agora? Onde têm sido tomadas decisões importantes? Quem é responsável? Quem votou neles? A governança agora é uma palavra popular, que está em todos os campos de atividade nos países evoluídos. Não é de se admirar que pessoas e instituições se sintam inseguras”. (Ibid., 2013, p. 92).


A construção de uma narrativa centrada do indivíduo, no seu esforço (empreendimento) e nas suas conquistas (recompensa pelo trabalho, mérito), típica destes tempos[4], une a ambição por um capitalismo financeiro desregrado com a celebração do mercado como fonte de legitimação política, alimentando o populismo como síndrome reacionária diante da modernidade. Um tipo de nostalgia violenta e catártica é movimentada para fins de controle sobre os indivíduos atomizados, verdadeiros autômatos e não autônomos politicamente como reclama a fórmula do governo democrático[5].


O artifício, tornado possível pela utilização dos algoritmos, pela disseminação das fake news e pela criação de teorias de conspiração é um tipo de guerra cultural[6]. Antes mesmo da criação da internet, um regime abominável se implantou sobre estratégia semelhante e suas consequências foram catastróficas. A violação dos direitos de grupos inteiros, um líder determinado e elites passivas produziram o assassinato em massa de cerca de seis milhões de judeus durante a segunda guerra mundial. O resultado, para os devotos fanatizados, não foi a terra idílica, mas o caos de um país destroçado, humilhado e dividido.


O mundo virtual atormenta, desorienta, mas é no mundo real que a vida acontece. A batalha pela criação de uma cultura pública, no sentido de republicana e democrática, exige projeto e ator empenhado na mudança; reclama que se coloque em pauta o tema da organização da cultura. Não basta denunciar as mentiras; é preciso formar seres humanos com capacidade de discernimento, autônomos e críticos[7]. É preciso movimentar as pessoas em direção a um novo pacto, adequado ao momento da modernidade, radicalmente reformista. A nostalgia regressista anima o campo adversário, confunde, destrói. E é de construção e esperança que falamos.


BIBLIOGRAFIA:


BAUMAN, Zygmunt. Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.


BECK, Ulrich. A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.


BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. 15ª reimpressão. São Paulo: Cia. das Letras, 1986.


CARDOSO, Fernando Henrique. No rescaldo da crise. In: CASTELLS, Manuel; CARDOSO, Gustavo; CARAÇA, João (orgs.). A crise e seus efeitos: as culturas da mudança. São Paulo: Paz e Terra, 2013.


CASTEL, Robert. As metamorfoses do mundo: uma crônica social. 12 ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.


DA EMPOLI, Giuliano. Os engenheiros do caos. São Paulo: Vestígio, 2019.


ENZENSBERGER, Hans Magnus. Guerra civil. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.


GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole: o que a glo0balização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2000.


KEEN, Andrew. Vertigem digital: porque as redes sociais estão nos dividindo, diminuindo e desorientando. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.


MAALOUF, Amim. O naufrágio das civilizações. São Paulo: Vestígio, 2020.


ORDINI, Nuccio. A Utilidade do inútil: um manifesto. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.


ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da educação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.


ROUSSEAU, Jean-Jacques. Júlia ou a nova Heloísa. Campinas: Unicamp, 1994.


SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1999.


WILLIANS, Rosalind. O apocalipse incessante da história contemporânea. In: CASTELLS, Manuel; CARDOSO, Gustavo; CARAÇA, João (orgs.). A crise e seus efeitos: as culturas da mudança. São Paulo: Paz e Terra, 2013.


NOTAS:


[1] Um ano após o lançamento da novela A Nova Heloísa, em 1762, Rousseau apresenta o mesmo sentimento quanto à relação do indivíduo com a sociedade que emerge das revoluções do conhecimento, políticas e sociais que marcam a transição para a modernidade. Em Emílio, ou Da Educação, de 1762, encontramos a seguinte passagem: “Sentindo-me arrastado, combatido por esses dois movimentos contrários, eu me dizia: não, o homem não é um quero e não quero, sinto-me ao mesmo tempo escravo e livre; vejo o bem, amo-o e faço o mal; sou ativo quando ouço a razão, passivo quando minhas paixões me dominam, e meu pior tormento, quando sucumbo, é sentir que podia resistir.” (Rousseau, 1995, p. 322).


[2] Comentando o ressurgimento dos nacionalismos e dos conflitos étnicos e religiosos após a queda do muro de Berlim, o ensaísta e poeta Hans Magnus Enzensberger aponta a correlação entre a exclusão social e a escalada da violência. O mercado mundial desimpedido produz um contingente crescente de perdedores e humilhados. Sua frustação é o alimento da nova fase da política, marcada pelo risco de guerra civil. (Enzensberger, 1995).


[3] Zygmunt Bauman qualifica essa nostalgia como retrotopia (utopia do passado). A modernidade, que em sua fase mais exuberante, na virada do século XIX para o XX, trouxe a perspectiva do progresso sem fim, chega ao século XXI envolta numa atmosfera de risco e temor. Em busca de segurança, as pessoas confundem o presente real com um passado que somente existe na imaginação. E temos a desorientação e a crise. (Bauman, 2017).


[4] Conforme Nuccio Ordini, “não é um acaso que nas últimas décadas as disciplinas humanas tenham passado a ser consideradas inúteis e tenham sido marginalizadas não somente nos currículos escolares e universitários, mas sobretudo nos orçamentos governamentais e nos recursos das fundações e instituições privadas. Por que empregar dinheiro num âmbito condenado a não produzir lucro? Por que destinar recursos a saberes que não trazem uma vantagem rápida e tangível?”. (Ordini, 2016, p. 33).


[5] O escritor Amim Maalouf, membro da Academia Francesa, escreve que o Grande Irmão da sociedade totalitária e, portanto, de controle, imaginado por George Orwell na distopia 1984 já é possível e está associada à mercantilização de tudo que é íntimo é privado: nossos hábitos, nosso estado de saúde e nossas coordenadas geográficas, por exemplo. “Além de sermos ouvidos, poderemos ser, a cada instante do dia, localizados e, às vezes, filmados, graças a nossos telefones portáteis, câmeras de vigilância, drones, satélites e outros instrumentos sofisticados. Assim, será possível saber, com precisão, quem encontrou quem, o que foi dito, onde cada pessoa passou a noite e mil fatos e gestos”. (Maalouf, 2020, p. 224).


[6] A utilização do Big Data para a ascensão dos líderes populistas da nova direita, de Trump a Bolsonaro, é objeto do trabalho de Giuliano Da Empoli, Os Engenheiros do Caos. A difusão de notícias falsas, o uso intensivo das redes sociais e a captura de dados que revelam o comportamento dos eleitores para fins de manipulação política dá sustentação ao que o autor qualifica como a “era da política quântica”, em que a democracia representativa está sob ataque e risco de falência. (Da Empoli, 2019).


[7] O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ao apresentar a coletânea de artigos organizada em livro sob o título a Crise e seus Efeitos, lembra que a revolução tecnológica informacional criou um espaço público novo. (Cardoso, 2013). De fato, não se trata de negar o seu potencial, mas de utilizá-lo progressivamente na difusão de uma cultura pública substantiva. Em um mundo de risco e pontilhado por ódios, esta deve ser edificada com base em valores não exclusivamente associados ao lucro e à utilidade, mas que recuperem o humano e a centralidade da política como construtora de possíveis.


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